Tudo ao molho e fé em Deus
Faca na Liga e postas de pescada
Pedro Azevedo
Como quase tudo o que se relaciona com o nosso futebol, a Liga Portugal é bipolar. Por um lado, anuncia defender o rigor, a integridade e a defesa do produto Futebol, por outro mantém em aberto uma "competição" que é objectivamente uma "faca na Liga". Senão vejamos: o que dizer de uma Taça onde se joga até ser madrugada, o árbitro se apresenta equipado com uns "flaps" aerodinâmicos sob a forma de uns autocolantes esvoaçantes - em modo "segurem-me, senão eu descolo daqui para fora" (como eu o compreendo...) - , o intervalo(?) induz-nos para as calendas gregas e os discursos do Fidel, não há guita para a vídeo-arbitragem e o emparelhamento das equipas em grupos e respectivo sorteio apenas visam uma "final four" onde os "3 grandes" estejam presentes? Acrescente-se um juíz que, apesar de talhante, não vê um "boi" à frente dos olhos e perdoa um penálti do tamanho de um Miúra ou de um Vitorino ao Famalicão, um campo de pasto mais apropriado à criação do gado Domecq e podem imaginar o pesadelo de que estamos a falar. Depois admiram-se dos adeptos voltarem as costas a este tipo de eventos. Já dizia o Schopenhauer que a soma do ruído que uma pessoa pode suportar está na proporção inversa da sua capacidade mental, e os adeptos são suficientemente inteligentes para não embarcarem em engodos onde sacristãos em Lisboa conseguem vêr uma formiga no cocuruto do Cristo-Rei enquanto o Cardinal, no Pragal (Almada), diz ao Lucílio que nada observou de anormal (rima e tudo).
É certo que em tempos esta "competição" serviu-nos para fazer umas cócegas ao ego, mas agora que até já somos campeões nacionais a coisa sabe-nos a pouco. Pelo que a única vantagem de aderir a isto é permitir rodar jogadores, o que aconteceu abundantemente ontem. Foi bom, na medida em que todos tivemos a confirmação da valia de Ugarte, um patrão que deixa o colarinho branco em casa e vai para o trabalho vestido como um operário. Muita categoria reunida num menino que tanto põe a bola a 30 metros como se envolve na luta por a conquistar, nunca deixando de procurar ser feliz nas aproximações em terrenos mais avançados. E de uma dessas aproximações resultou o nosso primeiro golo. A coisa pareceu pré-destinada quando o pé direito do uruguaio encaminhou a bola para junto do poste esquerdo da baliza do Famalicão, mas um minhoto interpôs-se e o esférico seguiu o rumo oposto e anichou-se no canto direito das redes. Voltando a Schopenhauer: "O destino baralha as cartas, e nós jogamos". E, escrevendo direito por linhas tortas, o Sporting adiantou-se no marcador. Depois houve o tal episódio da mão que o Mota não viu, que o comentador da SportTV justificou com o "ângulo fechado", o que pareceu um reparo paradoxalmente obtuso. Estabelece-se assim a seguinte proporção: quão mais agudo o ângulo (menos de 90º), mais obtuso o comentário; da mesma forma, quão mais obtuso (mais de 90º) o ângulo, mais agudo o comentário (como mais tarde se perceberia através da, perfeitamente audível, estridente emoção que se apoderou do comentador quando com o ângulo perfeitamente aberto não conseguiu perspectivar um claríssimo fora de jogo de um famalicense e julgou estar restabelecido o empate na contenda).
Se durante a primeira parte o Sporting escondeu a bola do Famalicão, na etapa complementar os leões preferiram controlar o jogo e reduzir os espaços. Ainda assim, couberam aos pupilos de Rúben Amorim as melhores oportunidades. Até que o Matheus Nunes libertou-se do espartilho e foi espalhar o caos na área dos minhotos. Por entre cruzamentos, remates e ressaltos, o Nuno Santos emergiu e com classe dilatou o marcador. Pouco depois entrou o Paulinho, e com ele nova esperança numa oportunidade de golo não desperdiçada. E desta vez o Paulinho não desperdiçou. Mas também não marcou, podendo talvez dizer-se que enjeitou, não rematando no timing correcto. Logo um senhor da SportTV aproveitou para umas postas de pescada. Segundo ele, o problema do Paulinho é o apoio incondicional do público. É o que se chama um ângulo obtuso sobre o tema do momento. Ora, andava eu pelos blogues a ler que a culpa da greve de fome do nosso avançado se devia aos "não-verdadeiros" Sportinguistas que criticavam a sua fraca produção em frente das balizas e afinal fiquei a saber que é do excesso de apoio que emana a maleita que o afecta. Não querendo fazer tábua rasa sobre o assunto, decidi desligar o televisor a fim de não pressionar o Paulinho com o meu incentivo. Estou agora ansioso por ler as crónicas dos jornais, ciente de que a coisa deve ter acabado numa cabazada de golos do homem de Barcelos. Tinha até planos para ir ver o Guimarães, mas se calhar fico em casa. É que com o estádio às moscas o Paulinho vai facturar. E o seu valor subir. Pelo que no dia em que já não houver um adepto nosso no estádio, vende-se o Paulinho para realizar algum capital, quem sabe transferindo-se então o nosso incondicional apoio para um sempre tão escrutinado qualquer produto da nossa Formação. Genial, o senhor da SportTV. (Queira o meu caro senhor desculpar-me, caso este meu incondicional incentivo ao seu desempenho perturbar futuras tiradas de génio da sua autoria.)
Tenor "Tudo ao molho...": Manuel Ugarte
P.S. Ah, e estamos agora mais próximos da "Final Four", ao contrário do Porto que já está fora. "O que passou-se?", dirão na sede da liga. Houston, we have a problem!? Se calhar, futuramente, é melhor a Taça da Liga avançar directamente para a Final Four pretendida, poupando-se os patrocinadores a estas contrariedades. À atenção do Dr Proença e do "rigor, integridade e defesa do produto Futebol".