Tudo ao molho e fé em Deus
Predestinação
Pedro Azevedo
Se não há campeões sem estrelinha, o Sporting precisou da Ursa Maior para bater o Braga esta noite em Alvalade. O facto nem é novo e parece dar razão a quem acredita que o título nacional desta época está predestinado, teoria que começa a reunir simpatia entre místicos e deterministas Sportinguistas. Um dos maiores místicos que alguma vez escreveu sobre futebol foi o famoso cronista Nelson Rodrigues. Fanático do Fluminense, criou o personagem do Sobrenatural de Almeida para explicar fenómenos aparentemente incompreensíveis que assolavam negativamente o tricolar carioca. Porém, quando o Flu finalmente voltou a vencer um campeonato, Nelson jurou ver o fantasma do Gravatinha, o protector do Fluminense, popular adepto que segundo o cronista havia falecido em 1958 em consequência da gripe espanhola. Assim, para os místicos, o Sporting também terá o seu Gravatinha, o que até fará algum sentido na medida em que 1958 marcou a última vitória leonina no campeonato com o que ainda restava (Vasques e Travassos) dos majestosos 5 Violinos, entrando então o clube num ciclo menos virtuoso. Nesse transe, para fechar o ciclo e começar um novo virtuoso, o nosso Gravatinha terá regressado agora como fantasma em tempo de pandemia de Covid-19 com o propósito de nos oferecer o tão desejado título. Já para os deterministas, tudo se deve ao controlo das causas e seu prévio conhecimento. Da mesma forma que o atrito de pau e pedra explica o fogo, um bom treinador e a sua concomitante escolha do plantel adequado estarão na origem do desempenho que nos conduzirá à glória. Não sei se o António Salvador acredita no destino, ele que deixou sair o Rúben Amorim sem que o Sporting batesse a cláusula de rescisão, mas o mais certo é começar a ser acometido de superstições a cada nova visita a Alvalade. É que nunca se sabe o que poderá encontrar à noite no Museu...
O Braga criou e o Sporting marcou, eis o sumário do que foi o jogo. Os arsenalistas tiveram 5 oportunidades claras de golo, os leões responderam com 100% de aproveitamento das ocasiões geradas. Outras situações não foram tão claras, como das duas vezes que Nuno Santos foi desarmado na "hora h", ou quando os pézinhos mágicos de Coates e Feddal impossibilitaram o que parecia inevitável por via dos remates de Iuri e Galeno, respectivamente. Todavia, se a maior ou menor eficácia faz parte do sortilégio do jogo, há que dar mérito às substituições operadas por Rúben Amorim que conseguiram estancar a supremacia que durante meia-hora os arsenalistas tiveram no miolo do terreno, zona nevrálgica onde por muito tempo Palhinha foi impotente para travar a superioridade numérica dos pupilos de Carvalhal. Valeu nesse período Adán, o poste e a desinspiração de Ricardo Horta. E se Adán deve melhorar com os pés, Raúl Silva teve dificuldade em ficar de pé, o que indica que os próximos tempos em Braga deverão ser de intensa terapia: como se já não bastasse o complexo de inferioridade do Salvador, ainda ter-se-ão de avir com o Síndrome de Ménière...
Apesar de ser católico, acredito que Deus terá coisas muito mais importantes com que se entreter em detrimento do futebol, o que em parte ajuda a explicar o livre arbítrio que se vê por aí. Ainda assim, creio que há destinos que são factos inquestionáveis. Por exemplo, a viagem de metropolitano para o Campo Grande é um destino que está antecipadamente programado. Porém, isso não quer dizer que infalivelmente lá chegará, podendo por exemplo descarrilar por motivo de imprudência ou negligência do maquinista. Assim também é no futebol, onde o maquinista que transporta a mais apetecida taça anda geralmente de apito na boca. (E contra isso não há misticismos ou determinismos que nos valham.)
P.S. Se eu tivesse antecipadamente escrito o guião deste jogo, dificilmente escolheria um desenlace melhor. Ou não tivessem sido os meus dois jogadores preferidos - Pote (coitadinho, está tão mal que só leva 11 míseros golos no campeonato) e Matheus - os autores dos nossos dois golos. Mas, atenção, que não haja confusões: eu ainda sou de carne e osso e ao fim de semana não uso gravatinha. Outra nota: não conheço a lei do jogo que manda admoestar com amarelo chicuelinas como aquela aplicada pelo Matheus Nunes a um defensor do Braga. É que, em vez de cortar a jogada ao brasileiro, quanto muito o árbitro deveria ter-lhe pedido para cortar as unhas, a única parte do seu corpo que eventualmente terá tocado no bracarense (um pedido de autógrafo também não lhe ficaria mal, o soberbo drible assim o mereceria).
Tenor "Tudo ao molho...": Pedro Porro (um leão de raça a dar o "Rugido" de Ipiranga)