Tudo ao molho e fé em Deus
Cartão amarelo
Pedro Azevedo
Não sei qual o espanto da generalidade dos comentadores, mas se durante todo o fim de semana só se ouviu falar em cartão amarelo a propósito da actualidade do Sporting teria sido muito difícil isso escapar aos ouvidos do Fábio Veríssimo, não é verdade? É que estas coisas sempre influenciam um bocadinho. Outra coisa: desde o Rui Costa, os árbitros vão todos àqueles cabeleireiros onde lhes fazem um penteado à voleibolista americano dos anos 80 e 90 e à saída começam logo a ouvir piadinhas fáceis do tipo de "sim, senhor, bonito serviço, merece um cartão amarelo!". De seguida vão até Paços, cidade conhecida por o clube da terra ser um submarino amarelo daqueles à portuguesa que já não submerge e anda sempre na linha de água. Como um árbitro gosta sempre de dar nas vistas, um amarelo aos pacenses quase nem se nota, não faz contraste. Vai daí, aponta para o lado, que no caso é verde e branco. Só assim se explica que quem comete 18 faltas escape com 2 amarelos e quem infringe a regra uma dúzia de vezes apanhe com meia-dúzia de admoestações de tom icterícia. É a mesma razão que justifica o Benfica raramente vêr cartões vermelhos. A excepção só está ao alcance de árbitros daltónicos. E o daltonismo no futebol português não costuma augurar grandes vôos...
Por falar em amarelo, quem não se deixou levar em cantigas foi o Ruben Amorim. Sabendo que os eslovenos andam habitualmente de camisola amarela (Tour), não quis arriscar colocar de início o Sporar contra o Paços para não ficar em inferioridade numérica. Perspicaz, o nosso treinador! Assim, o Tiago Tomás foi titular. E não se deu mal. Se é verdade que a abrir falhou um golo cantado, de seguida engendrou uma sofisticada carambola bilharistica que aprendeu com o Theriaga numa daquelas acções de "team-building" leoninas e levou a bola por fim a embater na mão de um incauto pacense que cometeu a ingenuidade de pensar que se podia usar os braços mesmo fora do enquadramento da baliza. O Totói, do União de Tomar dos anos 70, neste futebol actual seria um craque...
Quem passa o tempo a esbracejar é o Neto. Já sem o avô (Mathieu) em campo, entretanto reformado, o único que o atura é o Coates. É que o homem, de cada vez que tem a bola nos pés, pensa em 1906 coisas ao mesmo tempo, tempo mais do que suficiente para um adepto em casa sobreaquecer as sinapses antes do nosso defensor acabar por despachar a bola à queima. E, quando não tem bola, geralmente fica a contemplar a sua trajectória, esperando que o pronto-socorro uruguaio faça o resto. Em todo o caso, não há lance por si protagonizado que não acabe em recriminação a alguém. Menos a ele próprio, claro. Dizem que é sintoma de liderança...
Anda por aí muito boa gente a embirrar com o Matheus Nunes. Coitado do rapaz, já provou nos sub-23 o que pode fazer com a bola nos pés. Acontece que não é isso que o Ruben lhe pede nos seniores. E ele lá vai fazendo o que lhe é pedido, o que não será o melhor para ele, mas será certamente o que fará mais sentido à equipa na ideia do Ruben Amorim. E, como este não o tira, admitamos que se calhar está a fazê-lo bem. Ontem pelo menos correu o campo todo. Ele e o Wendel. Ambos sem o brilhantismo de um Porro ou de um Nuno Mendes, há que dizê-lo, mas com grande utilidade para uma equipa onde na tracção atrás o Vietto não engrena a marcha.
Mas o Homem do Jogo foi o Coates. Poemas homéricos deveriam ser elaborados sobre a exibição do uruguaio ontem na cidade do móvel. Em tempo de pandemia que recomenda o uso de máscara, o homem parece viver sob o efeito do Mask do Jim Carey, transfigurando-se, com elasticidade desdobrando-se à esquerda e à direita consoante as desatenções dos homens que lhe colocaram ao lado. Na ausência de um ponta de lança, investindo-se ele dessa qualidade. E é verde, obviamente. E grande capitão! Se há quem tenha beneficiado do sistema de 3 centrais para dar um salto de qualidade, esse jogador é Sebastián Coates, El Patrón!
Como o futebol não é só luta e é também arte em movimento, deixem-me destacar para o fim o Daniel Bragança. Pobre do Eustáquio, que ainda deve estar a perceber "o que passou-se" quando o menino lhe passou a bola por cima da cabeça e foi buscá-la mais à frente. Passo a passo, ou paço(s) a paço(s), o miúdo vai mostrando o valor de quem habita a nobre residência leonina sita em Alcochete. E, no entretanto, evidenciando que a celebérrima teoria do "gap" da Formação foi um passo no caminho para o abismo que nos fez ingloriamente perder 1 ano (e muitos jogadores que poderiam estar aqui).
Tenor "Tudo ao molho...": Sebastián Coates. Vamos!