Numa hora destas, em que mais do que o tempo estar parado é a nossa forma de viver que está suspensa, é-me difícil falar de futebol. Vivemos um momento singular onde nos é pedido para sobreviver. Não para desfrutar da vida como Deus a terá imaginado para nós, mas tão só sobreviver. Eu sei, acreditem, assim à partida parece pouco. Não foi essa a vida que escolhi para mim. Nunca me imaginei como um sobrevivente, como alguém capaz de trocar a liberdade de pensamento e de actuação por concessões várias que tantas vezes fazem o Homem perder-se no seu caminho. Mas aqui falamos de outro tipo de sobrevivência, é a nossa comunidade que está em risco. Este pedido que agora nos fazem é justo e vai ao encontro do ideal que persigo de sociedade: uma onde existe um sentido colectivo da vida e uma preocupação com o nosso semelhante e tudo o que nos rodeia.
Tantas e tantas vezes no passado o Homem se isolou dos demais, egoísticamente, de forma interesseira, individualista e egocêntrica. Quis agora o destino que esse isolamento se exprimisse altruisticamente. Eu estou em crer que teremos sucesso nessa tarefa. A confirmar-se, tal como espero, pensem então no que poderíamos fazer enquanto seres humanos se o nosso altruismo se pudesse manifestar sem distanciamento social, todos juntos e com respeito mútuo trabalhando em prol de um projecto comum, de um amor compartilhado. Sem exibicionismos, sem umbiguismos, sem bons nem maus da fita, apenas partilhando o melhor da natureza humana que existe em cada um de nós. Gostaria que fechassem os olhos por um momento e imaginassem um Sporting assim...
Um dia, após a tempestade, virá a bonança. Com ela, uma nova era. A reconstrução começará em nós próprios, naquilo que necessitamos mudar para podermos fazer a diferença. Deus não nos pôs no mundo para sermos mais um, e cada um deve saber extrair de si o melhor do seu potencial e entregá-lo à comunidade. Fazer a diferença! O Sporting em que eu acredito também é isso, aquele clube que em pequenino me entrou pelos ouvidos numa onda média da rádio até que uma primeira visita ao estádio transformou a onda num tsunami de emoções que foi crescendo, crescendo, sem parar. Um dia eu quero voltar a ver toda a gente feliz no nosso estádio. Quero de volta o sentimento de partilha. Entre amigos e entre desconhecidos. Desejo que as memórias que cada um tem do clube voltem a ser um património comum. E que isso seja vivido, celebrado, com a alma que marca a nossa identidade, a nossa "leoninidade".
Não há instituições sem homens que as sirvam. Portugal, enquanto nação, necessita do nosso civismo e do nosso sentido de responsabilidade neste momento. Como dizia António Quadros, apropriadamente citado pelo nosso Leitor Miguel Correia, Portugal está no mais fundo de nós, e sem ele seremos menos do que somos. Assim também o é com o Sporting. O clube nunca teria atingido o patamar mais alto se não fosse por esta necessidade que o Homem tem de se ligar a algo muito mais grandioso do que ele. Foi essa necessidade exponencial e exponenciada que tornou o Sporting enorme. Por isso, dos escombros do Sporting actual teremos de recuperar a razão das coisas, aquilo que nos liga e, ligando, nos multiplica. Não o que nos divide. Ter uma ideia diferente para o clube nunca poderá ser uma causa de divisão. Pelo contrário, será outra perspectiva, outra visão, algo que acrescentará.
Eu sei, o Sporting, tal como qualquer outra instituição, não pode estar adiado. Mas neste momento é a nossa vida que está adiada, suspensa pelo tempo. A morte saiu à rua, entra-nos pelos telejornais todos os dias. Se isso não nos fizer reflectir sobre o pó que nós somos no Universo, não sei mais aquilo que nos poderá alertar sobre a fragilidade da nossa condição humana. Guardemos por isso o nosso engenho, a nossa inteligência para a tarefa futura de construção e não de destruição. Gerando humanidade e não desumanidade. Apresentando trabalho e não propaganda. Quando se tem uma visão, um sonho e se pensa primeiro no bem-maior colectivo em detrimento do interesse pessoal, não há caminho impossível de trilhar nem obstáculos ou adamastores suficientemente imponentes que nos possam travar. De resto, a única coisa realmente importante a preservar é a vida, a nossa (de todos nós) e a das instituições a que nos ligamos de forma afectiva e/ou profissional. Mantenham-se saudáveis!
#estamosjuntos
P.S. O meu louvor à anónima comunidade de profissionais de saúde que tem estado na linha da frente da luta contra a covid-19, muitas vezes sem os meios ou a protecção devida que agora parece que felizmente vão chegar. A esses médicos, enfermeiros e auxiliares o meu agradecimento. Vocês são os meus heróis! Também gostaria de agradecer a todos os portugueses que têm sabido interpretar o que está em causa e que com o seu comportamento responsável e cívico vêm ajudando a conter a propagação da doença.