O trauma de Alcochete e o futuro
Pedro Azevedo
Não quero de forma alguma desvalorizar as consequências morais, reputacionais e financeiras supervenientes ao infame ataque a Alcochete e entendo que o tribunal deverá apurar até ao limite todas as responsabilidades inerentes a esse dia negro que tantos prejuízos causou ao Sporting Clube de Portugal, mas é tempo de avançarmos, sob pena de, não o fazendo, Alcochete vir a servir ad aeternum como desculpa face ao eventual insucesso.
Uma das consequências de Alcochete foi o fim do encurtamento da distância que nos separava dos rivais. Nas quatro épocas compreendidas entre 2009/10 e 2012/13, o Sporting terminou o campeonato com uma diferença para o primeiro classificado que oscilou entre os 26 e os 36 pontos. Ora, nas cinco épocas seguintes, entre 2013/14 e 2017/18, o clube conseguiu atenuar bastante esse "gap", finalizando a prova de regularidade do calendário futebolístico nacional com uma diferença para o campeão que orlou entre os 2 e os 12 pontos (-7, -9, -2, -12, -10). Certamente que a perda de jogadores importantes como os internacionais Rui Patrício, William Carvalho ou Gelson Martins, que rescindiram contrato, não pode ser dissociada do desfecho do último campeonato, competição que finalizámos a 13 pontos do primeiro colocado. Mais difícil de explicar são os resultados desta época desportiva até ao momento, período em que o Sporting já dista os mesmos 13 pontos da liderança do campeonato quando apenas estão cumpridas 14 jornadas. E custa mais perceber porque os acordos celebrados com os jogadores que rescindiram permitiram encaixar algum dinheiro para reforço da equipa. Simplesmente, a opção por jogadores cujo pico de carreira ocorreu há uns anos atrás, ou jovens a precisar de desenvolvimento implicou consumo de tempo de forma a que esses atletas se pudessem integrar ou readquirir a confiança perdida no passado, e tempo é uma variável que o Sporting não tem quando um presidente afirma que a época será melhor que a anterior. Adicionalmente, vieram também para o clube alguns atletas maduros, na casa dos 25/26 anos, mas de qualidade duvidosa para um clube com os pergaminhos do Sporting e que acabaram por servir de travão à imposição de jovens da nossa Academia, o que constituiu um duplo custo para o clube por via de contratação, prémios e ordenado, por um lado, e custo de oportunidade do não desenvolvimento de jovens para futura venda com significativa mais-valia, por outro.
Uma crise como a resultante de Alcochete pode ser vista como uma ameaça ou como uma oportunidade. Tem muita a ver com a liderança do clube a forma como se reage a um acontecimento traumático como esse. À colação trago aqui a história do Manchester United. Em 6 de Fevereiro de 1958, após paragem em Munique para reabastecimento, o avião que transportava a emblemática equipa do norte de Inglaterra caiu. Vários passageiros morreram, entre os quais 8 jogadores do clube. Alguns, como Duncan Edwards ou Tommy Taylor, eram "só" os melhores, outros como Eddie Colman ou Mark Jones eram também muito importantes. O Man U havia vencido os campeonatos de 56 e 57 e era campeão em título aquando do drama. Para além dos óbitos, havia jogadores com lesões provocadas pelo acidente, alguns deles em internamento hospitalar. Este acontecimento tinha tudo para justificar a perda de influência do Manchester United no contexto do futebol inglês e mundial. Mas Sir Matt Busby, treinador e um dos sobreviventes do acidente, não estava pelos ajustes e à volta de Bobby Charlton (também sobrevivente) começou a desenhar o novo United. Aproveitou então as escolas de formação do clube, de onde viria a sair um craque descoberto na Irlanda do Norte do calibre de George Best, e contratou cirurgicamente o jovem Dennis Law (21 anos) aos italianos do Torino, curiosamente outro clube marcado trágicamente por um acidente áereo que dizimou a sua equipa de futebol (todos os jogadores que vieram a Portugal participar na festa de homenagem a Francisco Ferreira, incluindo o famoso Valentino Mazzola, pereceram quando na viagem de regresso a aeronave embateu na cúpula da Catedral de Superga). Juntamente com outros reforços provenientes da formação, organizava-se assim uma nova geração de "Busby Babes", a qual está imortalizada por uma estátua à entrada de Old Trafford com o nome de "United Trinity" que reune Charlton, Law e Best. E a verdade é que o United reagiu bem e terminou o primeiro campeonato (59) pós-tragédia no segundo lugar, posição que repetiria em 64, para em 65 finalmente voltar a vencer a competição, feito que repetiria em 67. Em 1968, a coroa de glória, uma vitória por 4-1 (a.p.) sobre o Benfica de Eusébio daria ao Manchester United a Taça dos clubes Campeões Europeus, uma pequena compensação para a fatalidade que se abatera sobre o clube. Que este exemplo de superação, em circunstâncias incomparáveis (independentemente do dia negro vivido em Alcochete), anime os nossos dirigentes mais na procura de soluções e menos no foco no problema, começando pela optimização dos recursos existentes na nossa casa e por um discurso claro e conciso, com metas intermédias partilhadas com sócios e adeptos, que indique objectivos, prazos para a sua execução e os recursos que serão alocados. Caso contrário, temo que daqui a 10 anos ainda estejamos a apontar Alcochete como causa próxima para o insucesso.