La Vecchia Macchina
Pedro Azevedo
Zurzido de alto a baixo por imprensa, antigos jogadores e treinadores de referência após a eliminação da Vecchia Signora aos pés do FC Porto, Cristiano Ronaldo respondeu à bomba: hat-trick perfeito na Sardenha (cabeça, pé direito, pé esquerdo), liderança alargada da tabela de "capocannonieri" da Serie A, 770 golos na carreira e recorde de Pelé superado. Nada mal para quem está acabado...
O problema da análise que muitas vezes se faz sobre Ronaldo é descurar que o futebol não é ténis, mas sim um jogo de 11 contra 11. Os seus maiores detratores não perdem uma oportunidade para o subalternizar a Messi, desvalorizando o trabalho árduo aliado a uma boa base de talento face ao talento puro extraordinário, como se o esforço de superação constante não fosse algo de valorizar. Quais abutres, qualquer desfalecimento do grande campeão português é logo aproveitado para servir uma determinada narrativa, o que não surpreenderá numa sociedade onde há demasiada gente mais preocupada com as suas razões do que em dar um sentido colectivo às coisas. Não que a apreciação do talento natural de alguém não nos remeta para os deuses e o Olimpo e não encerre em si suficientes elementos de sedução. Nesse sentido, é tão impossível ficar indiferente ao teto da Capela Sistina como à esquerda a uma só mão de Federer, ao toque de pulso de McEnroe ou ao íman com que Messi prende à bola à canhota, assim a sensibilidade esteja treinada para entender a excelência de qualquer um destes artistas, mas a obra de Ronaldo fala por si e ficará para sempre como um exemplo de tenacidade, competitividade e proficiência.
Além do mais, olhando para o conjunto das 3 últimas temporadas europeias da Juve é mais fácil concluir que a Vecchia Signora perdeu apesar de Ronaldo do que por sua causa. Senão vejamos: em 18/19, a Juve encontrou o Atlético de Madrid nos oitavos-de-final da Champions e foi derrotada por 2-0 em Madrid. Os "colchoneros" eram os favoritos à passagem da eliminatória, mas um hat-trick de Ronaldo em Turim inverteu os acontecimentos a favor das "zebras". De seguida, o sorteio colocou a Juve frente ao Ajax. A Juve acabou eliminada pelos "lanceiros", mas Ronaldo marcou os dois golos dos italianos (1-1 e 1-2); em 19/20, a Juve foi eliminada pelo Lyon, valendo o critério do desempate pelos golos fora (1-0 e 1-2). Ronaldo bisou em Turim, ainda assim pecúlio insuficiente para permitir aos "bianconeri" vir a Lisboa disputar a Champions. Pelo que só nesta época Ronaldo não inscreveu o seu nome na lista de marcadores da sua equipa na fase a eliminar da Champions, o que não justifica de todo o conjunto de mensagens negativas que a seu respeito se leram durante a última semana. Não, o problema da Juventus não é Ronaldo, como aliás não o é a ausência de bons jogadores. É, sim, de uma política desportiva que gerou insuficiências numa posição vital como a de ponta de lança e multiplicou os clones no meio-campo, da falta de associação entre os jogadores e de um conceito de jogo mastigado e sem génio que tem hoje Pirlo como principal responsável.
De acordo com aquilo que temos vindo a permitir que se transforme a sociedade, a existência simultânea de dois craques do gabarito de Messi e Ronaldo não é festejada ou glorificada como deveria. Não, a mediocridade geral destes tempos leva-nos a procurar desvalorizar cada um deles em função do outro, situação a que nem um treinador de prestígio como Capello conseguiu fugir. Ora, é contra este tipo de narrativas bipolares que nos devemos rebeliar e perceber que nos foi concedido a distinção única de num só período termos a oportunidade de ver não um mas 2 jogadores que irão marcar para sempre os livros de registos do futebol mundial. Podendo cada um preferir o seu, naturalmente. Mas pela positiva. Agradecendo o enorme privilégio. E desfrutando. Até porque um dia irá acabar. Então sobrar-nos-á o consolo de transmitir às novas gerações que vimos jogar Ronaldo e Messi, sortilégio que lhes permitirá continuar a "jogar" na imaginação de cada um.