Histórias de Sporting
Fernando Mamede
Pedro Azevedo
Se Descartes foi o mestre que no seu tempo nos indicou a razão como única via segura para o conhecimento do mundo, Mamede involuntariamente aos nossos olhos surgiu como a cobaia que demonstrava que o processamento das emoções podia alterar a percepção da realidade e impactar com o somático até ao ponto de o bloquear. Dueto aparentemente improvável, mas com muito mais a ligá-los do que à primeira vista seria imaginável, ambos partiam do "penso", mas depois divergiam entre o "existo" do francês e o "desisto" do português. Caminhos diferentes, como se duas rectas paralelas se tratassem, e que no entanto num certo ponto se encontrariam. No infinito, como reza a geometria descritiva, para o efeito localizado em Estocolmo. Pelo menos para Descartes, que na capital sueca encontrou a eternidade enquanto trabalhava para a rainha Cristina. E se em Estocolmo se pode dizer, usando de alguma liberdade poética, que morreu a razão, também aí (re)nasceu a emoção de ser português quando Mamede bateu o recorde mundial dos 10 000 metros e entrou definitivamente para a história do atletismo mundial. (Ou como deixar de pensar pode ser uma forma de sublimar a existência.)
Vi sempre no Fernando Mamede um excelente atleta e um homem bom. E sempre pensei que o fardo que ele transportava dos seus fantasmas pessoais já era suficientemente pesado para que ainda o fosse sobrecarregar com a factura de uma madrugada mal dormida de Los Angeles. O Mamede tanto me fascinava como me inquietava. Tinha a resistência de um queniano e a velocidade de um jamaicano, o que lhe permitia aguentar o ritmo de um super-atleta como o Carlos Lopes para na última volta lhe fugir como um foguete. E mostrava-o. Na pista. Em competições nacionais. Em meetings internacionais. Aí não havia Lopes, Cova, quenianos ou etíopes que o conseguissem parar. E o nosso querido Professor Moniz Pereira sabia-o como ninguém. O pior acontecia nas grandes competições de atletismo, em jogos olímpicos, mundiais ou europeus. Então o seu corpo sofria um "shut-down" e era vê-lo desde as primeiras voltas na cauda do pelotão, à espera de encontrar a porta certa por onde fugir ao pesadelo vivido no estádio. Vendo-o nesse transe, já não se fazia de decepção o sentimento de um português. E quando a imprensa, que o achincalhava após cada nova desilusão, lhe arrancava palavra polémica, qualquer potencial ira nossa era trocada pela comiseração. No fundo, ele era um de nós, com as nossas fraquezas, o nosso medo de vencer. O outro, o Lopes, era de outro planeta. Adoptavamo-lo porque nos dava pedigree, mas até nos causava desconforto por mais realçar a nossa fragilidade. Com aquela inquebrantável confiança? Com aquela mentalidade de aço? Não, não podia ser um dos nossos. Mas era. (Grande Lopes, meu ídolo, fundista completo e campeão!!!)
Um dia um amigo chamou-me para conhecer o Mamede. Apresentou-se-me inconsolável, de lágrimas a escorrerem-lhe incontrolavelmente pela face. Havia estado minutos antes com um antigo presidente do Sporting e o estado de saúde debilitado deste ainda o perturbava. Senti-me esmagado pela sua sensibilidade, grandeza de alma. Lembrei-me então de 1987 e de um campeonato nacional de corta-mato disputado já na recta final da sua carreira. Nesse dia Mamede estava imparável. Não havia Regalo ou Pinto que o alcançassem. Passada após passada, volta após volta ao circuito, o seu avanço ia criando um fosso cada vez maior para o seus adversários. Entramos então na última volta e, subitamente, vejo-o a abrandar e olhar para trás e para o lado, preocupação inusitada para quem sabia ter a corrida perfeitamente controlada, com a meta à vista. E então entendo tudo: Dionísio Castro, um dos jovens e promissores gémeos Castro recentemente chegados a Alvalade, isolara-se na segunda posição e Mamede localizara-o no cotovelo oposto de um percurso com o seu quê de serpenteante e decidira esperar por ele. E assim viria a acontecer, com Mamede esperando largos segundos para que ele e Dionísio atravessassem a meta de mão dada, assim ainda mais realçando o domínio do Sporting. No fim até foi o Dionísio que acabou por ser declarado vencedor, mas o Mamede não ficou nada incomodado com a situação. O seu rosto apenas irradiava a satisfação de ter contribuído para a afirmação do clube do seu coração e, simultaneamente, haver ajudado o jovem colega a subir ao patamar da fama, mal sabendo aí que essa viria a ser a única vitória, e como tal ainda mais significativa, da carreira do Dionísio no Nacional de Crosse. Nesse dia, com a sua nobre atitude, com a sua generosidade, o Mamede foi o mais campeão dos campeões, razão pela qual o relembro aqui.
Nota: Fernando Mamede, nascido em Beja, chegou ao Sporting com 17 anos. Aí permaneceu por mais de 20 anos, ganhando 6 Campeonatos de Portugal em pista e 6 Campeonatos Nacionais de Corta-mato. Foi recordista nacional dos 4x400m, 800m, 1500m, 5000m e 10000m, entre muitas outras especialidades não-olímpicas. Recordista europeu dos 10000m por 3 vezes e recordista mundial dos 10000m, a sua única medalha individual em grandes competições acabou por ser o bronze no Campeonato do Mundo de Crosse de 1981. Com o Sporting sagrou-se por 9 vezes campeão europeu de corta-mato de clubes, em duas delas ganhando a prova individualmente.