A causa das coisas (reloaded)
Pedro Azevedo
No princípio era o sortilégio da bola, aquela "criatura" rebelde, com vontade própria, que rolava e saltava à minha frente. Não podendo ser domada, ensinada, adestrada, havia pelo menos que poder dominá-la, controlá-la, impôr-lhe a nossa vontade, e esse era todo um desafio. Jogar à bola era só a consumação do amor, muitas vezes primeiro era preciso merecê-lo, nem que para isso fosse necessário recorrer à manufactura caseira e improvisar um objecto redondo a partir de umas meias de vidro. Outras vezes havia que estudar a relação da bola com o vento, que parecia soprar com mais ou menos nós conforme a bola fosse de plástico ou de borracha. A bola de cautchu era o nirvana de qualquer miúdo, o banquete para todos os sentidos. Com uma bola "oficial" nas mãos, a ideia de jogador da bola ficava completa com a camisola do clube de eleição no dorso. A minha, a do Sporting, foi comprada na Socidel, a casa que anteriormente havia sido do melhor de nós todos, o incontornável Peyroteo.
Aos 8 anos, o sortilégio passou a ser o estádio. A minha primeira ida a Alvalade, o coração a bater aceleradamente no caminho, as luzes, o público, as balizas, a relva. Que emoção! Uma estreia de fogo, contra o Porto. E uma vitória, concludente, por 5-1, que se tornou inesquecível. No estádio vi passar todos os meus ídolos, com uma única e honrosa excepção: o meu primeiro ídolo nunca vi jogar ao vivo. Ouvi-o, imaginei-o, como naquela tarde contra o Benfica em que através da telefonia sem fios o relatador gritava a plenos pulmões um golo de cabeça apontado a 20/30 centímetros do solo, ou como naquela tarde de passeio de automóvel dominical em que marcou 5 golos a um guarda-redes do Oriental que curiosamente se chamava Azevedo como eu. Também o vi, fugazmente, pela televisão, num tempo em que "a bola" raramente passava no pequeno ecrã. Falo-vos de Yazalde, que eu associo sempre à minha ideia de Sporting. A minha paixão nasceu com ele, e o primeiro amor nunca se esquece.
O tempo foi passando e durante muitos anos o meu ídolo foi o Manuel Fernandes. Chegou Keita, Jordão ou Oliveira, mas eu mantive-me fiél ao Manél de Sarilhos. Pequenos de nascimento, grandes para os adversários. Durante alguns anos, essa minha idolatria foi partilhada com um jogador genial. Era o Fraguito, o homem das trivelas, classe pura ao ritmo do samba que os Vapores do Rego entoavam da bancada e um GPS na ponta de cada bota. Infelizmente, os joelhos não deixaram o transmontano ir mais longe, para meu desgosto e pesar de todos quantos amam o futebol. Quando o Samuel (primeiro) e o Manuel (depois) acabaram, senti um vazio. Gostei das "unhas" Douglas e Silas, mas o meu coração palpitava mais por duas estrelas que nunca confirmaram o seu imenso potencial. Eram o Litos e o Xavier, já que o Futre, de quem tanto gostava, nos deixou prematuramente. Do Xavier guardo uma memória mais recente: num torneio do Clube Sétimo, ali para os lados do Parque Eduardo VIIº, a minha empresa defrontou-o na fase de grupos. Calhou-me vigiá-lo durante alguns minutos, que é como quem diz marcá-lo com os olhos e poder de perto admirar o esplendor da sua ainda prodigiosa e intacta técnica - ó Xavier, também não havia necessidade daquele "elástico", não é assim? - , ao serviço de uma equipa onde também figuravam o seu irmão Pedro, o Carraça (a fazer jus ao nome, sempre a agarrar), o José Eduardo (durinho...), o Sotil, entre outros. Quis o sortilégio que ambas as equipas se tivessem apurado para a fase a eliminar, eles em primeiro como é óbvio, nós em segundo. E no mata-mata lá fomos sobrevivendo até ambos chegarmos à final. Ainda sonhámos - estivemos a ganhar por 3-1 muito à conta do pé leve do Pestana e da garra do Vilhena - , mas eles acordaram ainda a tempo e bateram-nos por 5-3. Na cerimónia de entrega dos prémios, a classe demonstrada na quadra pelo Xavier transferiu-se para a sala de jantar, um senhor. E eu, esmagado pela idolatria, senti-me pequenino para lhe dizer que ele era um dos meus eleitos...
Na década de 90, presenciei um quarteto de cordas de enormíssimo nível. O Sousa, o Cherba, o Bala e o "Pastlhas" tocavam uma música diferente de todos os outros, eles eram os "Fab Four". A seguir houve um hiato. Eu sei, tivemos João Pinto, Quaresma, Jardel, mas aquele que mais se aproximou do meu afecto foi o André Cruz, que parado mexia mais no jogo do que 10 formiguinhas trabalhadoras. Voltei a acalentar esperanças com Matias Fernandez, um jogador que poderia ter sido um dos imortais, mas a quem sempre pareceu que a vontade não acompanhava a capacidade ilimitada que tinha com os pés. Depois, um longo interregno. Muita burocracia, por vezes mais eficácia, mas a ausência daquele toque de genialidade. Até que vi o Bruno Fernandes, e ele reconciliou-me com as memórias de outros tempos.
O Sporting no seu estado puro é isto. Nesse estado, a paixão pelo clube confunde-se com o amor que temos ao jogo e a quem nele se destaca. Os jogadores são a razão disto tudo, a bola também. O estádio oferece a moldura perfeita. Sem espectadores, o futebol é como manteiga sem sal. Um artista sublima a sua arte perante uma audiência, sem ela perde a razão da sua existência. O segredo é a partilha, e é isso aquilo que um futebolista oferece ao seu adepto. Reparem que neste texto nunca falei de presidentes. E porquê? Porque se não são eles a razão do nosso amor pelo clube, também não podem ser a razão do nosso afastamento. Viva o Sporting!