Os jogos da minha vida (VII)
Pedro Azevedo
25.05.1980 Vitória de Guimarães - Sporting 0-1
A nossa equipa: Fidalgo; José Eduardo, Eurico, Bastos e Barão; Meneses, Ademar (Freire, aos 75 minutos) e Fraguito (Zezinho, aos 87 minutos); Manoel, Manuel Fernandes e Jordão.
O Sporting entrou pelos meus ouvidos em 1974 com um rugido tão sonoro que me foi impossível ignorar. Tudo se deveu à narração de um jogo a contar para o campeonato de 73/74 que a aparelhagem instalada no carro do meu pai reproduziu ao longo de uma viagem domingueira de automóvel. Nesse dia o Sporting recebia o Oriental e o relatador de serviço, de forma prolongada e estridente, um a um, ia assinalando cada novo golo de Yazalde (naquele tempo chamavam-lhe "Jázalde"). Despertou ainda a minha atenção o facto de, por sortilégio, ter calhado ao meu homónimo Azevedo a ingrata tarefa de dançar o tango com o argentino, mas à agressividade de Yazalde contrapôs o pobre guardião dos de Marvila a tristeza de por cinco vezes se ter de resignar submissamente a ir buscar a bola às suas redes. Um Tango de "mão-cheia"! O Sporting acabaria por aplicar ao Oriental uma chapa 8, o número do equilíbrio cósmico e das possibilidades infinitas que não deveria andar longe de ilustrar o meu sentimento nesse momento. Mais tarde, no início de 76, a onda média da rádio transformou-se num tsunami de emoções aquando da minha primeira visita ao José Alvalade. Jogo Grande, o Sporting como anfitrião do Porto de Gomes, Oliveira, Seninho e Cubillas. E ganhámos. E goleámos, numa reviravolta que terminou num cinco-a-um, dava Manuel Fernandes (1 golo) os seus primeiros passos no Sporting ao lado de um Fraguito (1 golo) que, sambando, pautava o nosso jogo.
Com um início tão auspicioso, achava eu que isto ia ser uma maravilha. Mas o tempo foi passando e 4 anos depois, uma eternidade na vida de uma criança, continuávamos sem ganhar o campeonato. Até que se levantou a esperança, decorria a época de 79/80. Ganhámos ao Benfica por 3-1 e com isso o direito ao tudo ou nada. O cenário era o Estádio das Antas. O Conselho de Arbitragem, num esforço para eliminar o ruído à volta do jogo havia decidido salomonicamente nomear 3 árbitros internacionais, dois deles com a missão de pela primeira vez na vida fazerem de juízes de linha, coisa peregrina. O principal, António Garrido, apitaria o jogo. Não desfeita a igualdade até ao intervalo, logo no início do segundo tempo o Freire colocou-nos na frente. De pronto, o Manuel Fernandes marcou o segundo. Anulado. Por fora de jogo. Inexistente. Um clássico dentro do clássico. Pior, a um quarto de hora do fim, o Biffe fez-se ao bife, que é como quem diz ao penálti, e o Garrido fez-lhe a vontade, aquilo a que o José Maria Pedroto, sentado no banco do Porto, se fosse contra ele apelidaria de "roubo de igreja". Penalidade marcada e o Vaz defende. O Homem de Preto manda repetir e assim começa o nosso enterro. Quer dizer, o Vaz, que era de Setúbal e já chegou entradote a Alvalade, no meio daquela caldeirada ainda voltou a defender o penálti do Oliveira, mas Romeu, o Cenoura que ainda viria a jogar por nós, recargou para golo. Confesso que chorei, para um miúdo tinham sido emoções a mais, e o sabor a injustiça acelerou a minha perda da inocência. Foi aí que o meu pai se aproximou de mim, deu-me um abraço e disse-me que se porventura o Porto não ganhasse na Póvoa me levaria pela primeira vez a ver um jogo fora de casa, em Guimarães. Faltavam jogar 3 jornadas e esta promessa deu-me suficiente alento para não baixar definitivamente os braços e depositar ainda fé no Varzim. E os poveiros, gente briosa e habituada aos Adamastores que andam pelos mares, fincaram o pé a um gigante terreno e empataram (com) o Porto, pelo que eu iria a Guimarães com o Sporting na frente do campeonato.
A jornada começou pela manhã, no Comboio Verde (what else?), ali no Rego, para onde me desloquei com o meu pai e onde ele se reuniu com os amigos Sportinguistas. E lá fui eu, todo pimpão, cachecol ao pescoço, carruagem adentro, para ver o meu Sporting. Durante a viagem recordou-se o último campeonato, o de 74, e o Yazalde que eu já só vi pela televisão. Recordo que o comboio parou em Campanhã (Porto) e que aí tivemos de mudar de composição em direcção a Guimarães. Chegados à Cidade Berço, logo uma vimaranense me levou o cachecol. Corri, alcancei-a e recuperei o objecto da minha devoção como se dele dependesse a minha própria vida. O meu pai sorriu. Entrámos no estádio, que na altura se chamava Municipal, e posicionámo-nos atrás de uma baliza. Com o coração aos saltos, aguardei cheio de esperança o início da partida.
O Sporting começou por atacar para a "minha" baliza. A todo o vapor, com Fraguito a puxar os cordelinhos, o Sporting era dominador e as oportunidades iam-se sucedendo. Porém, provavelmente devido à ansiedade, os nossos na hora da verdade não conseguiam desfeitear o Melo, guarda-redes que dois anos depois se juntaria a nós. Até que Manoel saltou com Manaca, a bola resvalou na nuca, ou nas costas, do nosso antigo campeão de 74 e, zás!, lá para dentro. Euforia da imensa mole humana que por amor ao Sporting se deslocou a Guimarães. O título estava já ali, agora era preciso segurá-lo. O intervalo permitiu regularizar o ritmo cardíaco, mas nada poderia preparar o meu coração para as emoções que ele viria a viver no segundo tempo. A bem da verdade, o Sporting teve mais do que chances para resolver o jogo, mas Manuel Fernandes e Jordão sempre falharam por uma unha negra. Negras não eram, mas ruídas já estavam as minhas (unhas) quando o Jordão é carregado para penálti. Se fosse o Manél tinha ficado no chão, mas qual Gazela de Benguela o Rui levantou-se, ainda isolado, correu e falhou um golo certo. Desespero geral, não havia maneira de matar o jogo. E o pior estava para vir: num último fôlego, o Vitória lança o Vítor Manuel, um avançado que tinha jogado no Sporting na época anterior. Cheio de ganas de mostrar o seu valor à sua antiga casa, começou a pôr a cabeça em água aos nossos defesas. Subitamente, arranca um remate seco, rasteiro, rente ao poste. Mesmo ali à minha frente, eu vi o golo. Ia ser golo, só podia ser golo, foi o que pensei nesses milésimos de segundo em que sustive a respiração. Mas, eis que, embora felino, o Fidalgo se lança já tarde. Tarde demais, pensei eu tal a potência do remate, enquanto o Fidalgo se espreguiçava todo e, espreguiçando-se, se esticava mais e mais, "frame a frame" na minha memória fotográfica em câmara lenta, tempo quasi-suspenso tal como o título ali à mão de semear. E o Fidalgo toca na bola e afasta-a do seu destino mais do que certo. E o Fidalgo bate com a cabeça no poste. E o Fidalgo parece perder os sentidos. E o Fidalgo volta de cabeça entrapada, brioso, voluntarioso, guerreiro, grandioso, a ocupar o seu lugar entre os paus. E o Fidalgo... para sempre será para mim o Homem do Título!
Ainda mal recarregadas as baterias dirigimo-nos para o comboio. Muitas, muitas emoções para digerir. O título estava mesmo ali. Nova paragem em Campanhã. Vou à janela, o João Rocha, grande presidente, vai entrar. Vai ser bonita a festa, mas ainda falta ganhar ao Leiria, penso. Penso, logo existo. Mas por pouco, um pedregulho enviado por algum relapso embate na quina da janela. O meu pai ordena-me, vocefera-me, grita-me desesperadamente que saia dali. Imediatamente. Nem tive tempo de processar, o título ali tão perto tinha prioridade. Faltava uma semana, uma semana que pareceram anos a contar os dias. E finalmente a catarse, o José de Alvalade cheio até às linhas que enquadravam o relvado. O Peão, orgulhoso, a ulular as bandeiras ao vento. E eu na bancada a ver o Jordão a desaparecer no meio de um magote de gente após um golo. Era nosso o título. Que emoção! (Foi há 40 anos, mas parece ter sido hoje.)