A Revolução
Pedro Azevedo
Portugal é aquele país em que tudo vai acontecendo naquele jeito de que se não for exactamente assim não há problema, que isto de engendrar o acaso deve obedecer a imenso planeamento, parecendo sempre que o importante para os decisores(?) é que pareça que algo mude para que tudo fique mais ou menos da mesma forma. De vez em quando, surge alguém que vem abanar o status-quo" vigente. Em Portugal, a alguém assim chamam-no de revolucionário, no resto do mundo é um simples empreendedor. Foi mais ou menos assim, contra este estado de coisas, que desceu à capital o capitão Salgueiro Maia, ele próprio um herói com perfil de anti-herói, naquele jeito semi-inconsciente de quem, à despedida, diz "vou ali abaixo fazer a revolução", levando para o efeito consigo o chaimite como quem vai fazer a rodagem ao Hummer, coisita "discreta" e mal disfarçada só por obedecer às cores dos semáforos. Já muito consciente foi o seu regresso, que revelou o homem por detrás do soldado, o sentido de honra e espírito de missão de alguém que soube sempre qual o seu lugar na história e qual a janela de protagonismo a que se obrigava. Por isso voltou, como se nada fora, ao seu quartel, como puro e bom homem das casernas, imune ao xico-espertismo dos aproveitamentos pós-revolucionários e ao lambe-botismo tão nacional das honrarias e das comendas.
Falo de Salgueiro Maia, por quem tenho profundo apreço, porque o futebol português necessita como nunca de um homem como ele, disposto a tudo arriscar para vir até Lisboa fazer a revolução. Quem já foi a um estádio de futebol sabe que o assobio é uma arte bem nacional. Mas o adepto assobia, dirigindo o seu silvo para alguém que está à sua frente. É o chamado assobiador amador, uma singular forma de AA que exige reuniões semanais a fim de sublimar o vício em vez de o reprimir. No entanto, à medida que se vai subindo na pirâmide do poder, vamos vendo assobiadores cada vez mais profissionais. Curiosamente, a direcção dos assobios vai-se desviando cada vez mais para os lados. Tanto para os lados que os potenciais alvos deixam de os ouvir, por também não ser esse o propósito do emitente. Este só pretende desviar as atenções e lateralizar para os portugueses. Sim, porque lateralizar é uma arte que os portugueses vêm desenvolvendo de há muitos anos a esta parte. Enquanto os anglo-saxónicos apressam-se a chegar ao âmago da questão, aquilo que no futebol é expresso pelo jargão do futebol-directo, os lusitanos vão percorrendo o algoritmo do caminho crítico, escondendo sempre a sua verdadeira intenção até ao último momento, não vá o conjuntural alvo aperceber-se de que também queremos ser felizes. Por isso, engonhamos. Engonhamos e lateralizamos até à exaustão, até o oponente cansar-se e baixar as suas protecções, para, depois sim, desferirmos o golpe mortal. Ou não, porque às vezes o "inconseguimento" está tanto no nosso sangue que ficamos presos nos meios e esquecemos os fins. Não foi mais ou menos assim, após elaborado planeamento do acaso, que nos sagrámos campeões europeus? Ou como o melhor coisa que os nossos briosos jogadores um dia fizeram por Portugal pode, simultaneamente, ter sido a senha para a legitimação do pior do futebol português...